O BRASIL IMPÉRIO NAS PÁGINAS DE UM VELHO ALMANAQUE ALEMÃO: A RIGOROSA SELEÇÃO NAS FONTES E SERIEDADE ABSOLUTA COMO FATORES DE CREDIBILIDADE E PRESTÍGIO
[Após um breve hiato, hoje damos continuidade à série de publicações semanais sobre o “Almanach de Gotha” e sua relação com o Império do Brasil e a Família Imperial Brasileira, tanto à época da Monarquia como na República, tomando como base o excelente livro “O Brasil Império nas páginas de um velho almanaque alemão”, escrito em 1992 pelo Professor Armando Alexandre dos Santos, destacado historiador, genealogista, jornalista e escritor, além de fiel monarquista e colaborador de longa data deste Secretariado.]
Realmente, foi portentosa a obra do “Almanach de Gotha”. Ele se transformou em uma instituição.
“O que deve principalmente caracterizar este Almanach é a utilidade, a concisão e a exatidão dos dados”, dizia a introdução – “Avant-Propos” – do “Gotha” de 1830. 77 anos depois, no Prefácio da edição de 1907, não é outro o objetivo manifestado pela Redação: “O Gotha, esperemos, continuará também durante o novo ano a ser o amigo fiel e seguro que jamais se consulta em vão.”
Não foi nada fácil, às sucessivas gerações de redatores, manter essa confiabilidade nunca desmentida. Todo o século XIX foi muito conturbado. Bem menos que o século XX e o nosso século XXI, mas, de qualquer forma, muito conturbado: guerras, revoluções, questões dinásticas, tronos ruídos, nações antigas desaparecendo, nações novas entrando em cena, dinastias que decaíam ou que se elevavam. Qual o critério que adotou o “Gotha”, em meio a essas transformações, para basear com segurança suas informações?
Há que distinguir, a propósito, a conduta do almanaque em matéria política da que ele tomava em matéria social ou protocolar. O exame atento da coleção do “Gotha” permite fixar como critério básico em matéria política respeitar, um tanto pragmaticamente e sem discutir, os fatos consumados. Essa adaptabilidade imediata e sem reservas aos regimes de fato, quaisquer que fossem eles, era, diga-se ainda uma vez, sem dúvida pouco louvável, mas lhe permitiu atravessar muitas fases difíceis.
Já em matéria social, em assuntos dinásticos e protocolares, o almanaque manifestava rigidez, mantendo, em larga medida, fidelidade aos princípios tradicionais vigentes. O que, juntamente com a seriedade e a confiabilidade das informações que apresentava, assegurava-lhe uma posição sólida, prestigiosa, de “tira-teimas” irrecorrível, de árbitro inapelável que pairava acima das discussões.
O “Gotha” timbrava se basear exclusivamente em “fontes oficiais”. Que entendia ele por fontes oficiais? Para questões genealógicas e nobiliárquicas, as fontes oficiais eram, normalmente, os Chefes das respectivas Casas, fossem reinantes ou destronadas. No caso de usurpação de um trono, a partir do momento em que o novo estado de coisas era consolidado ou reconhecido internacionalmente, o almanaque aceitava o fato consumado, mas continuava a registrar, na parte genealógica, a linhagem expropriada. Para os dados diplomáticos e estatísticos, o que tomava exclusivamente em consideração eram os fornecidos pelos governos “de facto”. Veremos, mais à frente, quando tratarmos da Independência do Brasil, da questão dinástica portuguesa, da Proclamação da República, em 1889, exemplos dessa linha de conduta.
Falemos um pouco, por enquanto, da seriedade do “Gotha”. A nota tônica do almanaque, o título de que mais se ufanava, era precisamente essa seriedade, com a decorrente confiabilidade de suas informações, tanto na parte genealógica quanto nas outras partes (a diplomática, a estatística e a cronologia) que integravam o volume. Além das informações diretas, das fontes oficiais e primárias, jornais e revistas europeus eram também acompanhados com cuidado pela redação do anuário, especialmente para a elaboração da cronologia. Quando um dado não era de fonte absolutamente segura, o “Gotha” fazia questão de consignar tal circunstância. Especialmente o que transcrevia de jornais, não garantia.
Querem os leitores uma prova da seriedade do almanaque? Vejam o seguinte desafio – trata-se de um verdadeiro desafio – que lançou, no “Avant-Propos” da edição de 1839, o Doutor W. H. Ewald:
“É graças à pureza das fontes em que se abebera seu Redator que o ‘Almanaque de Gotha’ deve – ao menos no tocante aos artigos genealógicos – aquela exatidão que tanto sucesso lhe valeu, e que, em sua longa trajetória, dele fez uma obra tão difundida. É, pois, justo que o Redator faça tudo o que esteja ao seu alcance para manter a bela reputação dessa obra (...).
“A Genealogia é e será sempre o objetivo principal do ‘Almanach de Gotha’ – e é com a finalidade de provar a exatidão das datas enunciadas (ano, mês e dia), que o livreiro editor desejaria provocar os leitores a uma crítica severa, a um exame atento. É nas fontes primeiras que nós procuramos as datas constantes do Almanach, seja por via de correspondência direta, seja consultando as obras genealógicas dos países aos quais se refere o artigo. Os resultados dessas pesquisas devem ser tidos como exatos, pois em Genealogia não se admitem retificações ulteriores. Assim, se nosso Almanaque apresenta algum número diferente do que figura em outras obras análogas, estaremos sempre em condições de explicar as variantes – ou exibindo cartas das partes interessadas, ou citando obras que façam autoridade. E o editor se obriga a pagar, a quem primeiro lhe indicar por escrito um erro dessa natureza na presente edição, um thaler de prata da Prússia, como reparação, podendo o crítico dispor dessa quantia como queira, para si ou em benefício dos pobres. E além de responder à pessoa que tenha descoberto o erro, faremos constar o recebimento de sua acusação nas páginas do ‘Allgemeinen Anzeiger der Deustchen’ [Indicador Geral da Alemanha, folha publicada diariamente em Gotha], acrescentando em breves palavras o reconhecimento de nosso erro, ou então submetendo à relação desse jornal, para conhecimento do público, as provas e as citações em que se apóia a data contestada de nosso Almanaque.”
Era realmente um desafio corajoso, pois cada leitor se sentia induzido a conferir rigorosamente as informações referentes à própria família.
Qual o resultado dessa prova-dos-nove da seriedade do Gotha?
O Prefácio do “Almanach de Gotha” de 1840, datado de 11 de setembro de 1839 e assinado pelo mesmo Doutor Ewald, informa que apenas três erros foram acusados em toda a edição daquele ano, e cita os números do jornal em que o Gotha reconheceu publicamente que sua equipe cochilara.
Falou-se acima da rigidez da publicação em matéria social e protocolar. Convém ainda aqui dar alguns exemplos.
O alto prestígio do Almanach, nesse campo, era assegurado pelo rigor com que ele se recusava a registrar casamentos não reconhecidos pelos Chefes das respectivas Casas, bem como os descendentes dessas uniões. Esses casamentos, o mais das vezes entre pessoas de condição desigual, foram, lamentavelmente, tornado-se mais frequentes ao longo do século XIX. O Gotha se recusava a registrá-los, não por serem contraídos entre pessoas de condição desigual, mas pela circunstância de não os haver autorizado o respectivo Chefe de Casa: “Não podemos admitir tais casamentos, porque todos os artigos de nossa obra se baseiam em informações oficiais, e somente na falta de tais informações, e em decorrência de dúvidas que dessa carência resultem, pudemos fazer menção de alguma aliança desse gênero”, diz o “Avant-Propos” da edição de 1839.
O tema é retomado no Prefácio do ano seguinte. Depois de declarar que “adotamos para nossa obra os princípios da legitimidade”, defende-se da acusação de incoerência por ter registrado algum casamento desigual. Se o fez, é porque o reconheceu o legítimo Chefe de Casa, pelo menos implicitamente, nas informações oficiais que mandou à Redação: “Se algumas vezes o Almanach cita ‘mésalliances’, nem por isso se terá o direito de acusá-lo de inconsequente, pois a fonte em que nos baseamos prova que o casamento foi reconhecido e isso nos basta.”
Esse critério, o “Almanach de Gotha” o conservou até o fim. Voltaremos a ele quando, mais à frente, estudarmos suas relações com a Família Imperial Brasileira.
No “Avant-Propos” da edição de 1866, é ainda o mesmo rigor e a mesma seriedade que transparecem: “A partir de agora a admissão de uma família não se fará a não ser que o seu Chefe ou algum membro influente dela garanta a exatidão dos dados a nós fornecidos, assumindo a responsabilidade deles caso outras famílias façam reclamações com relação à origem dos títulos reivindicados por esses documentos. É bem esse o motivo de não termos aceito diversos pedidos de admissão chegados neste ano.”
O Prefácio do “Almanach de Gotha” publicado em 1899 também merece ser lembrado: “Não faltaram este ano tentativas – por vezes em tom cominatório – para desviar a Redação de seus princípios de imparcialidade absoluta e de não submeter-se a interesses particulares. O Almanach não faz política e jamais a fará. Limita-se pura e simplesmente aos fatos consumados e os consigna com toda exatidão histórica possível. Não tem nem ‘partis-pris’ nem preferências de espécie alguma”. E, aludindo à famosa frase do Geral dos Jesuítas que preferia ver a Companhia de Jesus extinta a vê-la com os estatutos modificados, concluía o referido Prefácio: “Aqui também se aplica o dito: ‘sic ut esta ut non sit’ (seja assim como é ou então deixe de existir).”
Na edição de 1850, era publicado como destaque o retrato de “Louis Napoleon Bonarparte, Président de la République Française”. Sendo a abolição da “Monarquia de Julho” um fato consumado, não havia, na lógica do Gotha, por que não reconhecer a nova República Francesa. Entretanto, se em matéria de regimes políticos o Gotha, em via de regra, aceitava sem maiores dificuldades os fatos consumados, era outro seu procedimento quando, por atos autoritários, algum governo republicano queria, de uma penada, abolir toda uma ordenação social vigente. Vale a pena ler, a propósito, o que escreveu na introdução à mesma edição de 1850 o Doutor W. H. Ewald:
“Apesar da abolição dos títulos de nobreza decidida pela mais recente – evito propositalmente dizer última – revolução na França, reproduzi no Almanaque os nomes das famílias ilustres que até o presente lá figuraram. Um decreto bem pode por algum tempo suprimir o uso de certos títulos; mas será por acaso possível anular a importância histórica das belas e grandiosas recordações que os herdeiros desses nomes ilustres conservarão? Duvido. Deixo claro, entretanto, que nenhuma das informações neste volume me foram transmitidas por parte de tais famílias.”
O Doutor Ewald costumava escrever essa introdução anual sem usar a primeira pessoa do singular, sempre de modo impessoal. No caso concreto, porém, ele preferiu abrir uma exceção e falar na primeira pessoa, como chamando a si a responsabilidade da decisão. E levou o escrúpulo a ponto de eximir de qualquer responsabilidade as famílias francesas citadas.
Vale a pena ainda aduzir aqui outra amostra da seriedade com que eram coletados os dados. Veja-se outro Prefácio do Almanach, este da edição de 1899:
“O trabalho em detalhe, as pesquisas, as verificações, as provas, foram mais consideráveis do que nunca, tendo como método buscar nas próprias nossas informações. Esse método, que há anos seguimos no anuário diplomático, agora, mais ainda do que no passado, estendemos à parte genealógica.
“Quinze dias antes da impressão do texto destinado à nova edição, submetemos as respectivas provas a cada membro independente de cada Casa soberana.
“Esse sistema pareceria dever excluir qualquer erro, se errar não fosse próprio da natureza humana. Um exemplo entre cem outros: quando ocorreu o horrível assassínio da Imperatriz Elisabeth, certos jornais pretenderam que ela havia nascido em Possenhofen. Nós nos dirigimos a seu irmão, Chefe da Casa Ducal da Baviera, o qual, com extrema gentileza nos confirmou que ela havia nascido em Munique, como sempre havia indicado o Almanach. Pouco depois, entretanto, os jornais reproduziram a inscrição gravada em seu ataúde: ‘nata in Villa Possenhofen’. Para eliminar definitivamente qualquer dúvida, quisemos recorrer ainda ao Chefe do Escritório Heráldico da Baviera, cuja amabilidade em relação a nós nunca se desmentiu. Certificamo-nos então de que a ilustre falecida havia efetivamente nascido no Palácio Ducal de Munique, às 10 horas e 43 minutos do dia 24 de dezembro de 1837. Vê-se, pois, que a menor das informações frequentemente só é obtido à custa de um grande esforço.”
Imagem: a Família Real Francesa à época da restauração dos Bourbon; da direita para a esquerda, o Conde de Artois (futuro Rei Carlos X), o Rei Luís XVIII, a Duquesa de Berry (nascida Princesa Maria Carolina de Bourbon-Sicílias), a Duquesa de Angoulême (nascida Princesa Maria Teresa de Bourbon, filha do Rei Luís XVI e da Rainha Maria Antonieta), o Duque de Angoulême (futuro Rei Luís XIX, na ótica dos monarquistas legitimistas) e o Príncipe Carlos Fernando, Duque de Berry.
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